24.3.09

CLÁUDIO CEREGATTI


Quando tinha quatro ou cinco anos de idade, desmontava pregadores de roupa, aqueles antigos de madeira e brincava de carro de corrida pelas paredes. A pista era “Intilagos” e os carros corriam com “gajorina écho”.

Aos sete anos, vi Bird atravessado na entrada do Pinheirinho. Berlineta amarela 22. Quem viu, jamais esquece.

Dos oito aos quatorze, freqüentei Interlagos encarapitado na carroceria de um caminhão, com um grupo de amigos liderado por meu vizinho Walter Thomé, aficcionado que viu falecer Celso Lara Barberis a seus pés lá na subida do café.

Pouco depois de completar quinze anos, matava aulas no SENAI em São Bernardo do Campo. De ônibus ia cedinho até o Parque Dom Pedro. Uma hora depois, atravessava o centro velho a pé até a Praça das Bandeiras. De lá, mais uma viagem até o ponto final, na porta do velho autódromo.

Só para passar o dia andando por aquele asfalto.
Ia até onde tinha visto Emerson Fittipaldi rodar, quando quebrou a suspensão traseira da Lótus 72 quase na minha frente. Depois descia até a curva do laranja, onde Ronnie Peterson brilhou no Torneio de F2. Depois até a ferradura, bem onde Luiz Pereira Bueno apontava a Porsche 908. Caminhava até a curva do sol, tentando entender como Jackie Stewart contornava aquela curva fantástica. Passava pelo sargento, barranco tão alto e tão íngreme por onde andou Chico Landi, nas Ferraris, Alfas e Maseratis freando por ali. Todos carros desafiadores. Carros que ainda não sabia dirigir. Aqueles mesmos que um dia sonhava acelerar naquela pista fantástica.

Estive por lá em todos os GP’s de F1.
1972 nas arquibancadas em frente ao relevé da reta de chegada.
1973 acampado entre as curvas 1 e 2.
1974 e a chuva acabou com a prova, a corrida do Pace que vinha vindo e minha barraca, alagada pertinho da curva 3 em meio a festa.
1975 acampei desde a quarta-feira no meio do retão. Nós e uns uruguaios. Ajudei a montar alambrados. Durante a noite nos boxes, sorrateiros. De dia banho no lago. Inesquecível vitória do homem que dá nome a Interlagos, o lugar que chamo de Templo Sagrado.
De 1976 em diante, só estrangeiros venceram. Mas estava lá sempre. Sobre o muro do retão, apanhando da polícia, me escondendo da cavalaria, dormindo atrás de guard-rails, sofrendo debaixo do sol que nasce às costas do retão e se põe de frente à curva do sol.

Finalmente aos 18 anos em 1975, me enfiei por ali de carro. Um Itamaraty bordô com quatro marchas na coluna. “Sem querer querendo”, exatamente como faço até hoje, invadi escondido o asfalto do Templo.
Ressabiado e excitado vi o retão bem na minha frente, um ângulo por demais conhecido porém não de carro, comecei a chorar.
Não tive como conter a emoção. As lágrimas caíram, toldando meus jovens olhos sonhadores. Contornei a curva 3 devagar, impressionado com a inclinação. Fui pela curva 4 até a ferradura, e vi o quão alto era o morrote bem na tangencia. A pé nem parecia...
Quando cheguei no pé da subida do lago ainda chorava, e começava a ficar convulsivo, incontrolável.
Lembro que subi devagar, apontei para a reta oposta e parei no meio da curva do sol. Bem onde vi Jean Pierre Jarrier parado quando liderava em 1975.
Olhei de lá para o retão, onde acampei quando ele quebrou. Meus joelhos quase se dobraram. Apoiado no capo quente perdi a noção do tempo e o que restava de controle. Chorei como nunca ali, convulsiva e descontroladamente.
Até alguém aparecer e me expulsar dali. Não sei quem era, nem o que fazia.
Aos gritos, mandou segui-lo. Completei o resto do circuito seguindo um velho fusca pela curva do sargento, laranja, esse, pinheirinho, bico de pato, mergulho, junção e subida do café. Pensando nem sei direito em que, dirigindo por aquele asfalto pela primeira vez.
O fusca entrou pelo portão antigo, bem em frente aos boxes.
E por ali fui expulso. Não mais aos prantos, humilhado pela circunstancia mas feliz como nunca. Lembro que parei na avenida, perto da subida do café e espiei ainda por cima do muro velho, para olhar novamente o conhecido cenário.

Estranha e inexplicavelmente, ainda faço isso, mais de trinta anos depois desse dia. Me enfio por entre matos e morros, chegando antes do sol nascer. Fiz isso centenas de vezes, uma espécie de ritual.
Espio e respiro Interlagos, nosso Templo Sagrado. Esse mito ainda vivo e mutilado do automobilismo mundial, palco de homens geniais e mestres de seu ofício.
O velho asfasto também nos observa. Desafiador, silencioso, quase esquecido.
A mítica faixa de asfalto de desenho genial e inigualável, as históricas curvas e retas ainda estão ali, povoadas pelos fantasmas da velocidade, marcadas pelas manobras dos Grandes que lá por lá passaram.

Não há nada igual no mundo. Interlagos original só encontra paralelo em Nurburgring, ainda viva, ativa e preservada em seus 22 quilometros.
Diferente daqui, os alemães mantem o mito. No caso brasileiro, o melhor circuito do mundo teimosamente resiste, semi-abandonado e ainda visível, como que clamando por uma restauração, uma retomada, uma nova vida.
Nosso traçado cabe num vale, com excepcional vista e é ainda tão variado e desafiador como em 1940. Falar bem de seu desenho é repetir o óbvio. Basta perguntar a qualquer piloto, de qualquer época, em qualquer carro qual era seu circuito preferido. Tão excepcional que meninos da geração vídeo game o tem como desafio maior até hoje, redivivo em telas de computador e torneios virtuais.

Devemos esse renascimento aos fantasmas que lá habitam, às gerações que por lá cresceram e viveram, e a todos aqueles que virão.
Interlagos vive em nossos corações e mentes, e sobrevive ainda sob nossos olhos, bastando olhar. A pista está lá, sua maravilhosa essência e desafio maior a pilotos de todos os quilates.
São Paulo merece ter de volta o melhor circuito de corridas do mundo, digno de nossos títulos mundiais e de uma estirpe inigualável de pilotos.

3 comentários:

Edison Guerra disse...

Grande Ceregatti.Este tem história para contar.História esta que compartilho,pois sempre fui aficcionado pelo Templo Sagrado,assistindo ao longo dos anos,as provas em todos os pontos possíveis do autódromo,também fugindo da cavalaria,às vezes,recebendo um golpe de sabre nas costas,mas sempre feliz por estar ali.Só não tive o prazer,até hoje,de pilotar,ou melhor,dirigir por aquele asfalto mítico.
Parabéns Ceregatti,pela excelente descrição das suas grandes aventuras,e felizmente,poucas desventuras no Templo.
Edison Guerra.

Anônimo disse...

Obrigado, meu caro amigo sumido Edson.
Tá mais fácil encontrar voce em fotos perdidas do que pessoalmente.
Quanto a essa digamos... falha de formação, nada há que impeça. O asfalto tá lá, as madrugadas tambem, e as provas de regularidade...
Abraços
Claudio Ceregatti

Anônimo disse...

Boa !