13.4.09

ROBERTO AGRESTI


Foto feita em 1970 ou 1971 na garagem da BINO no Cambuci, época em que ainda usava calça curta mas já sabia do que gostava. O carro é um Royale-Ford.
Dado curioso: atrás da parede branca estavam sendo construídos os primeiros chassi tubulares dos Fórmula Ford BINO. Essa garagem era a minha perdição, eu passava horas ali dentro olhando os carros e vendo os caras trabalhando. Bino Mark II, os Corcéis preparados, os Royale... Quando teve o Torneio BUA de Formula Ford no começo dos anos 70 os carros todos ficaram semanas ali. O paraíso era do lado da minha casa!


OITO MIL SANTOS METROS

Domingo, dia de missa, mas dos motores. Tudo começava bem cedo, e o começo era movido a óleo diesel. Da Aclimação ao centro no 417 da CMTC, do centro até Interlagos no “Rio Bonito” da viação sei lá qual. Dois buzuns, uma hora e meia de viagem para assistir corrida no Templo, Interlagos.

Assitia corrida fosse do que fosse. Naquele tempo, começo dos anos 70, São Paulo dormia até tarde nos domingos. As ruas pareciam meio desertas, as avenidas livres, gostar de corrida era ser minoria, era pertencer a uma facção radical, era ser fundamentalista, era execrar a bola, times e gols.

Para mim e meu comparsa de hábitos e crenças Eduardo Correa (master do site GP Total) o prazer da velocidade já começava no ônibus, avaliando o piloto do coletivo. Quanto mais insano fosse ao volante, especialmente na insidiosa curva de alta sob o túnel da Av. São Gabriel, tomada da Av. Sto. Amaro, mais ganhava pontos.

Chegando a Interlagos, o point de invasão tradicional era o muro ao lado da delegacia, que dava para os fundos da caixa d’água que fica bem atrás da arquibancada. Naquela época para entrar era peciso pagar, e para nós pagar para ir à missa soava heresia, e colocava as finanças de adolescente no vermelho. E quer transgressão melhor do que infringir a lei nas barbas dos homens da lei?

Mas não era só essa a graça de pular o muro do lado da delegacia: ao despencar dentro do autódromo a tal caixa d’água nos protegia dos olhos da vigilância, e nos colocava estratégicamente ao lado da lanchonete da ANCAR e seus estupendos cachorros quentes úmidos e moles, aditivados com a mais aguada das mostardas. Eram engolidos em duas mordidas rápidas para não se desfazerem nos saquinhos. Eca!

A caixa d’água não era só o lugar ideal para entrar no templo e comemorar matando a fome. Era e certamente continua sendo até hoje o lugar da arquibancada que oferece a melhor visibilidade dos sagrados oito mil metros de asfalto, 80% ou mais do traçado sob controle. De tanto ver corrida ali treinei o olho: seguia duas ou três disputas diferentes e sabia em que parte da pista encontrar cada uma delas, timing perfeito. Experiência e horas de vôo a serviço da paixão, rato de Interlagos D.O.C..

Terminadas as disputas, hora da sobremesa, deliciosa e especial: invadir o box! Vários eram os buracos no alambrado, muitas as alternativas de rota, escolhidas de acordo com o posicionamento de quem tinha o dever de manter longe os fanáticos com mãos cheias de dedos pois – é claro – não bastava apenas ver de pertinho a carretera de Camilo Christofaro, o Fúria de Jayme Silva, o Bino de Luiz Pereira Bueno. Era necessário tocar, por a mão, como se faz com o nariz do touro de Wall Street ou com o javali do mercado de Florença. Só esse contato físico com os sagrados objetos da veloz paixão nos dava a certeza de que era tudo verdade, era o mundo real, e não um belo sonho.

Interlagos era oito mil metros de puro espetáculo.
Curvas 1, 2, Retão e 3. Suspiro profundo. Quem vai frear mais tarde na Ferradura?
Lago, Reta oposta e Sol. Qual o primeiro a apontar no Sargento?
Laranja e… suspense, logo desvendado na saída do Esse, rumo ao Pinheirinho, Bico do Pato, Mergulho e Junção.
Mais um pequeno sumiço e chega a hora do Café, e da reta torta que leva à 1, ao box, e à gloria da bandeira quadriculada.

Interlagos era meu. Interlagos era nosso. Era de quem amava cada metro daquele quase sempre mal cuidado asfalto.

Um dia, um horrível dia, inventaram que os 8 mil sagrados metros eram muitos. Como se fossem pelancas, decidiram por uma cirurgia plástica. O cirurgião não amava Interlagos, e fez o que fez.

A alma está ali, ainda, mas o botox nas zebras, a lipo nas curvas, e o silicone nas áreas de escape transfigurou a beleza botticelliana, farta e exuberante, transformando-a numa anoréxica pista de parcos 4 mil e poucos metros, poucos para tanta paixão.

Extinguiram o anel externo! Mataram a 1, a 2 e a 3! Estupraram a Ferradura! Inverteram o Lago e o Sol!
O Sol transformado em estacionamento! Como puderam?
O Sol, onde agachadinho atrás do guard-rail, escondido como um rato (de Interlagos, D.O.C. ...) vi Jackie Stewart, Niki Lauda, Ronnie Peterson, Emerson Fittipaldi e tantos outros passarem a metros do meu focinho, cuspindo de seus V8 Cosworth o melhor dos monóxidos de carbono direto para minhas ávidas narinas. Nem crack, poder, heroínia ou dinheiro viciariam tanto…
O Sol transformado em estacionamento! Como puderam?

Alô Graham Hill, Mike Hailwood, Carlos Pace, Barry Sheene, vocês andaram no velho Interlagos. Será que aí do céu tem como interceder por uma causa nobre?
Queremos a velha pista de volta!!!

Chame-se outro cirurgião plástico, um desses que entenda que em senhoras algumas rugas merecem ficar onde estão, que estrias são como condecorações da batalha e que há vida inteligente num peitinho caído…

Há quem sustente que é possível ressucitar os mágicos oito mil metros sem comprometer os homologados 4 mil e poucos atuais, que ungidos pela F1 de tio Bernie e asseclas garantem que Interlagos não terá o mesmo fim de Jacarepaguá.

Quero acreditar nessa ressurreição para, quem sabe, chorar de alegria percorrendo – não apenas com os olhos mas ao volante do Puma nº 22 – os renascidos oito mil santos metros.

Esse será um lindo dia.


Roberto Agresti

3 comentários:

Romeu disse...

Que maravilha, Agresti!
Uma descrição perfeita e apaixonada sobre os belos 8 quilometros do Templo.
Um retrato perfeito da pista que amamos.
Parabens.

Pé de Chumbo disse...

Agresti, parece coincidência, mas o meu roteiro pra ir a Interlagos, lá por 67, 68, era a mesma aventura, só que eu saía da Lapa, ia ao centro, e o resto vc já sabe...Só não comi o tal cachorro quente (Eca!), eheheh...Eu também tinha meus 15 anos, e amava aquele cheiro de óleo de rícino em frente aos boxes, misturado com cheiro de borracha queimada. Nunca deveriam ter mexido naquele traçado!
Vai ser duro, mas com a comissão (de peso) que está formada, acho que dá pra brigar pela restauração do Templo.

Erik von Eye disse...

Comecei frequentar Interlagos em 1974, com o Luís Antonio Sanzovo, um amigo tão apaixonado por carros e corridas quanto eu. tínhamos uns 12, 13 anos.O Luís tinha uma tia que morava próxima ao autódromo, e por isso já conhecia as manhas para acessar a pista. O roteiro era o mesmo: depois de uma hora de busão, pular o muro, ou passar pelo vão em algum ponto do trajeto em que estivesse quebrado, e dar um jeitinho até chegar aos boxes. Durante anos fizemos isso, e na década de 80, já adultos, a pista ficava aberta durante os treinos e várias vezes dei umas voltas na pista com meu carro particular. O Luís chegou a preparar um Opala para correr na Classe C, o que facilitou o ingresso aos boxes. Assisti a corridas espetaculares, e nunca esquecerei de uma das mil milhas, onde acessei a pista de madrugada e com mato pelo pescoço! Em 1986 fiz minha última incursão no Templo via muro, numa prova do Campeonato Brasileiro de Marcas. Comemorei a vitória do Escort junto à equipe Greco/Ford, lá nos boxes. À uns quatro anos, assisti a provas da GT3/GT4 e Superbike com meu filho, desta vez sentado nas aquibancadas em frente aos boxes, como um espectador comportado. Não foi a mesma coisa, assim como o circuito não é mais o mesmo. Saudades.